quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Hamlet sincrético: comentários de uma historiadora. por Margaret M. Bakos

Na sua etmologia, a palavra Teatro significa um espaço público criado à encenação de jogos e idéias. Esse foi o sentido e uso dado pelo Grupo Caixa Preta, formado por artistas negros, à idéia da montagem de uma peça em um pavilhão amplo do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre.
O recado do espetáculo – Hamlet Sincrético – o segundo do grupo e uma reelaboração do clássico de William Shakespeare, a partir de uma estética negra, onde os elementos componentes da cultura afro-brasileira servem de metáfora, começa a ser dado antes do início da peça.
O público, numeroso ao longo dos três meses de apresentações semanais, é conduzido, logo à chegada, por um passeio a pé pelo conjunto magnífico dos prédios, inaugurados em 1935, no vasto terreno que abrigou a mais antiga e tradicional instituição psiquiátrica de Porto Alegre. Até chegar a um imenso portão de uma das construções, ele percorre um caminho de calçamento pedregoso e irregular. Está escuro, chove fraquinho e faz frio, quando surge o primeiro ator e se ouve os primeiros sons da peça, que são conversas incompreensíveis travadas atrás dos muros.
A ansiedade toma conta de todos, há um desejo de se entrar logo no lugar, entender o que se fala, mas o personagem, transculturado em mestre de cerimônias, vestindo um fraque, com capa, chapéu, bigodinho fino e um sorriso imenso, abrindo o portão, faz uma pergunta:
- Boa noite pessoal! Querem entrar?
A resposta afirmativa surge uníssona:
- sim!
E a figura simpática repete:
- Como? Não ouvi bem!
O clima se descontrai, quando a resposta vem mais forte:
- Queremos, sim!
Pronto, estão todos rindo! Formou-se a magia do diálogo, a empatia necessária entre atores e o público, que vai ser mantida até o final do espetáculo de uma forma magistral!
A utilização espacial não convencional,sente-se logo, atende a diversos aspectos da encenação, como a busca de uma linguagem que fuja do palco italiano e frontal, que transite pelo sincretismo cultural e religioso, sendo os personagens encarnações de tipos ou personagens da mitologia cultural negra, em especial as religiões afro-brasileiras: Hamlet, por ser aquele que busca a justiça, estará associado ao orixá Xangô, o Fantasma Hamlet, o pai assassinado, é Oxalá, Gertrudes, é uma espécie de eterna rainha do carnaval e Polônio é um ex babalorixá que se converteu e virou um pastor evangélico, que nega a sua cultura, enquanto que Cláudio é Zé Pelintra por seu caráter amoral.
Tais escolhas revelam muitas estratégias para enfrentar tradições, no caso, a resistência à exposição das ligações umbilicais existentes entre as culturas africanas e clássicas, as quais estão presentes na cultura brasileira. As transculturações em diversos níveis reveladas, pela peça, explodem de forma surpreendente, muitas vezes. Neste caso, o ritmo, as cores, danças, músicas, corpos e olhares revelam, ao público, fatos, valores, símbolos presente no nosso cotidiano. As cenas inebriam, cativam, envolvem ao público, apresentando pela revelação da exclusão, o grau de identidade que restou, unindo a todos.
A peça é uma obra de arte estética ainda, pela beleza plástica dos personagens, marca do Grupo Caixa Preta e ela consegue dar um recado complexo, mostrando os fios que tecem, como Ariadne, da mitologia grega, uma forma de representação da liberdade, da criatividade e da historicidade do povo brasileiro.
1] Prof. Dr. De História (PUCRS)

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